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Desempacotando minha biblioteca | 7 Fotografia

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Alexandre Sequeira: Nazaré do Mocajuba, 225.

A fotografia que me move, por 7 Fotografia

Assim como os homens e as mulheres, as fotografias percorrem caminhos, cumprem destinos – pré-estabelecidos ou não, que isso se deixa a cargo da crença de cada um. Surgem do mundo e andam por ele modificando-o, reconstruindo-o, desengonçando-o. Há que se deixar claro que fotografia é quase gente, tem vontade feita também, a espera apenas de ecoar. Porque, assim como o som, a imagem também precisa do eco pra sobressair, precisa respirar o ar dos outros. Imagem sem encontro é “imagem marcada para morrer”.  Sem um olhar, o que é luz perde metade do sentido.

Fotografam-se coisas para expulsá-las do espírito, disse Kafka. E me parece que, no expulsamento, o peso sai do espírito de quem fotografa e toma o de quem vê, num ato de possessão que, entre outras mazelas, deixa cicatrizes.

Anderson Schneider: The loudest whisper, 2006.

Penso isso quando lembro do texto Vai dizer que nunca sentiu uma fotografia desviar seu caminho?, de Cláudia Linhares, que marcou o sentido de uma forma minha de viver fotografia. Ele consegue dizer o indizível que me moveu a pesquisar, estudar, ser fotógrafa. Porque não apenas uma fotografia mas a fotografia em si, o campo, moveu meu caminho completamente. Minha relação com a fotografia sempre foi muito aprendiz. E a coisa mais instigante é que sempre que achei que comecei a entendê-la, algo aconteceu para me desequilibrar dessa ideia, e me mostrar meu engano. Porque é como se um novo caminho sempre surgisse, uma nova rota possível.

Que a vida é um desconcertar eterno.

Sempre tive medo, muito medo, de terminar minha vida como a personagem Ana, do conto Amor, de Clarice Lispector, que depois de uma experiência intensa, apaga a flama do dia e volta a viver na rotina amena que neutralizou os seus sonhos. O texto de Cláudia fala de uma fotografia num caminho inverso a esse, daquela que nos diz quando perdemos o rumo e quando encontramos novas estradas. Ler esse texto é reencontrar essas imagens que mexeram significativamente comigo, desestruturaram meus brios.

Evgen Bavcar: L’àngel, 1995.

Faz algum tempo que eu li um conto de Hilda Hilst, em que ela falava que a personagem, diante da perda, parecia uma cadela fendida pela dor; uma marca que a acompanharia pelo resto da vida. Essa imagem de ser fendido por algo – ruim ou bom – que você vai carregar com você pro resto dos dias é que define esse encontro com a imagem. É caminhar para o abismo, fazendo uso daquela força singular que é acessada quando temos coragem de mergulhar no sentindo inverso. Quando a expansão é a da pupila dentro do escuro de nós mesmas, procurando o que perdemos ao longo do tempo, procurando o que vai ser transformado em debate, em discussão, em pensamento, em silêncio. Aquilo que vai aparecer nas composições das nossas imagens e dos nossos textos, o que está nos trechos que a gente seleciona para cantarolar ao longo do dia, aquilo que faz parte das nossas indignações e compreensões.

Existem fotografias que fizeram isso, marcaram a minha pele, estão cicatrizadas em mim. Estamos unidas para o resto da vida. Elas são minhas tatuagens invisíveis. São fotografias capazes de nos dar sentido de existência, como se tivessem me feito me dar conta de que eu existo, de que o mundo existe e de que tudo é meio que um milagre, mesmo que não necessariamente divino. Funcionam como uma ferramenta para contestar a insuportável teoria do eterno retorno de Nietzsche (tudo o que a gente vive, cada dia, cada coisa, cada erro, se repete pela eternidade indefinidamente), o mais pesado dos fardos, segundo Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser.

Redemunho

João Castilho: Redemunho, 2006.

Porque essas imagens me fazem me sentir existindo, unicamente, especialmente, como se isso, esse sentimento, esse sublime não pudesse se repetir nunca. E é daí que percebo a força transformadora que a fotografia tem na minha vida. De alguma forma ela sempre vem nos momentos cruciais e desestabiliza, mexe, tira tudo do lugar, me tira do meu espaço e me faz repensar meus conceitos. E, quase sempre, me faz perceber o que de fato é importante.

Não consigo separar muito bem a fotografia de tudo o que me resta, o que pode soar lindo, mas às vezes torna-se algo difícil de carregar. Nas inúmeras vezes em que já pensei em desistir da fotografia, de alguma forma eu estava “desistindo” da vida. Não no sentido mais urgente dessa expressão, mas no sentido de desistir de me alimentar de pulsação e vibração de boas energias. Sempre que os períodos eram ruins, a fotografia de alguma forma também se afastou de mim. E nesses momentos de fundo do poço, foi a fotografia que me deu o impulso, a energia que faltava para voltar a respirar.

Acho que a fotografia é como o fio tecido pelas Parcas, que decidem questões sobre a vida e a morte. Porque apesar de o calendário anual ser estruturado a partir do sol, é o calendário lunar que estrutura os meses. Nove luas é o período de gestação de uma mulher. E é a Deusa Nona quem tece o fio no útero materno, a Deusa Décima cuida da extensão e do caminho desse fio, e a Deusa Morta, que é a outra extremidade, corta o fio a qualquer momento. A qualquer momento. Num ciclo infinito, como o eterno retorno de Nietzsche, em que a morte sempre será seguida de outra vida.

Maureen Bisilliat: Pele Preta.

As fotografias também são assim. Algumas cortam um fio, nos mostram uma morte, inauguram um novo ciclo, uma nova vida. Outras escancaram portas que estavam entreabertas, deixando a vida seguir seu fluxo, seu caminho, às vezes, nos obrigando a fazer escolhas. Cláudia fala das fotografias que instauram a possibilidade de mudança, produzem brecha para um novo modo do nosso corpo se saber, de nosso olhar se ver. Um outrar-se que não é torna-se outro, mas desterritorializar-se, estabelecendo novas relações com o vivido. Formando outros mundos, que se criam para expressar afetos novos, que pedem passagem.

Essa fotografia, na verdade, não é uma fotografia só, mas A Fotografia como objeto de conhecimento, experiência, atividade, encontros, transformação e vida. Como técnica, ferramenta, instrumento, forma de pensar e expressão. A fotografia, ela própria, com todas as fotografias que já vi e que ainda vou ver, aquelas de que gosto e aquelas de que não gosto, todas elas fazem parte da minha vida desviada. A fotografia que me escolheu e que foi minha escolha.

Porque as fotos são também uma forma de se reconhecer no mundo, até mesmo num álbum de família. Ninguém lembra o dia em que nasceu. Ninguém se lembra da sua vida quando bebê. As fotos contam essas histórias. E quem não se vê sendo outro, pode sentir a perdição de praticamente não se reconhecer, nascido, vivendo uma história, de não ter nada que lhe coloque essa memória cabeça adentro. Uma memória fotográfica, mesmo que inventada, é capaz de dar conta da nossa existência.

Existo, sou gente, tenho história, raiz porque a foto está ali me provando quando tenho dúvidas. E por isso, posso dizer que a fotografia muda meus caminhos cotidianamente. Escolhi viver de e para a fotografia. E não há nada mais forte do que isso na minha vida. A fotografia é quem me move, de fato, filosoficamente e praticamente. Seja livremente ou de forma compulsória. E no fim, só agradeço. Todos os dias. Às fotos que já vi e àquelas que ainda verei, ou reverei com outros olhos, para que elas sempre continuem mudando meu rumo.

Gosto das fotos porque elas me movem.

Referência:

SANZ, Claudia Linhares. Vai dizer que nunca sentiu uma fotografia desviar seu caminho?

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Sete Fotografia é um blog editado por Ana Lira, Bella Valle, Joana Pires, Maíra Gamarra, Priscilla Buhr e Val Lima.

Samuel Aranda: Yemen, 2011.


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